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Deficiência Visual, Horizontes Longínquos

30 Dezembro 2022
Deficiencia Visual

 

Camnalai da Silva Rigna é uma jovem, guineense de 25 anos de idade, deficiente visual que frequenta o 2° Ano do curso de assistente social na Universidade Lusófona, e ao mesmo tempo é estudante do curso médio de língua portuguesa.

Camnalai Deficiente visual

Quando era criança começou a apresentar alguns problemas de vista e a mãe foi orientada pelos familiares a utilizar remédios caseiros (ou cura tradicional como é designado por alguns) para efeitos de cura. Entretanto, não muito convencida, levou a filha para o hospital onde receitaram alguns medicamentos, e no desespero de curar a filha, ela utilizou simultaneamente ambas as receitas (caseira e o medicamento), o que contribuiu para piorar a situação. Sem melhorias, Camnalai foi levada novamente para o hospital, e o médico informou que a situação era irreversível, confirmando assim a perda total da visão aos três anos de idade.

Apesar de ter crescido num internato e das dificuldades vividas ao longo dos anos, a deficiência visual nunca ganhou espaço ao ponto de fazer com que ela não alcança-se muitos dos seus objectivos.  

Membro da Agrice há muitos anos, ela decidiu entrar no curso de assistente social, com intuito de futuramente poder ajudar as pessoas que precisam, pois o  apoio recebido por ela por parte da Agrice, permitiu-lhe  entender a importância e o significado da ajuda na vida daqueles que muito precisam. Mesmo sabendo das possíveis dificuldades relacionadas ao estudo, como por exemplo, os materiais escolares, a discriminação, o transporte etc., decidiu seguir o seu rumo, enfrentar a sociedade, romper as barreias e inscrever-se na Universidade. A inserção na classe não foi muito fácil para ela, bem como  para os colegas e professores. A surpresa em relação a sua presença na sala era evidente, bem visível a todos, a sensação de Camnalai era como se os colegas e professores estivessem a perguntar e agora? Como será?... De facto, ela ouviu alguns comentários desagradáveis como por exemplo: O que é que esta veio cá fazer... Esses comentários ao invés de causarem ansia e desespero serviram-na de impulso e transformaram-se em mais um elemento ou arma de combate. Um acontecimento marcante fez contornar toda esta situação. Numa das provas realizadas na turma,os colegas fizeram a prova escrita e ela fez a prova oral e obteve uma excelente nota, melhor do que as dos colegas.

O resultado surpreendeu a todos, inclusive o professor. Ele decidiu utilizar a prova dela como exemplo para mostrar aos colegas que aquela pessoa que todos em um determinado momento pensaram que as suas limitações poderiam influenciar os seus resultados, revelou-se apta e ultrapassou todas as espectativas, ou seja, voltando a teoria de: O facto de, não implica que...

As surpresas não ficaram por aí. Uma vez levou um computador emprestado para a escola e os colegas ficaram encantados ao descobrir que ela sabia utilizar o computador. A forma de escrever em braille é uma novidade para muitos.  Hoje cada vez que o professor sai da sala de aulas, os colegas se aproximam dela para conversar, fazem perguntas e querem conhecer/ entender mais a sua realidade. Por esta e outras razões Camnalai entende que a sensibilização das pessoas é fundamental, pois é  única forma das pessoas entenderem que somos todos iguais, e daí a inclusão. 

Desta forma, perante estes factos, o preconceito e a discriminação desapareceram, e a admiração dos professores e dos colegas ganhou espaço. Hoje, existe uma preocupação da turma em saber se ela está bem e como podem a ajudar.

Camanalai Deficiente Visual

A mobilidade ainda constitui um dos principais desafios, uma vez que toda a conjuntura a volta é muito complexa. Apesar do apoio da Agrice a nível de subsídio para o transporte, obstáculos como buracos no chão, falta de mecanismos de sinalização, uma pessoa disponível para a acompanhar em alguns casos, e a indisponibilidade dos taxistas em a transportar, são situações bem presentes no dia à dia. Portanto, a ida a universidade é um verdadeiro desafio em todos os sentidos, sobretudo para uma pessoa que afirma não ter recebido grande apoio do Estado para estudar. Para poder acompanhar bem as aulas ela utiliza um gravador e um instrumento chamado pauta e um gravador.

O gravador porém não tem capacidade da armazenar todo o conteúdo das aulas, por isso, a única alternativa segundo a mesma, é memorizar as matérias e apagar o áudio para poder ter mais espaço e gravar novamente. Em relação a leitura dos livros, ela conta com o apoio e tempo disponível  de alguns membros da família de modo a complementar o estudo.

No que diz respeito a propinas, durante todo esse percurso escolar, a isenção foi parcial apenas nos últimos anos do liceu, e continua assim na universidade.

Amante do atletismo ficou em segundo lugar no paraolimpíadas realizado em Marrocos em 2018 na corrida de 100 à 200 metros. Em 2021 conquistou a 3ª posição no paraolimpíadas de Tunísia de 100, 200 e 400 metros. Em 2019 participou de uma convenção na Etiópia e marcou presença numa maratona organizada neste país.

Foi deputada parlamentar nacional infantil, e faz parte do comité para-olímpica. É um dos membros da banda musical da Agrice, antes tocava violão no grupo e agora canta.   

Apesar de reconhecer todo o esforço que a Agrice tem feito para que ela possa representar o país a nível internacional, ela gostaria que o Estado ou algumas organizações ajudassem os atletas na preparação continua, como por exemplo com o  transporte, equipamentos,  materiais de treino, alimentação, etc, e não somente no momento da competição.

Como afirma Camnalai "O estudo é a única arma que têm, por isso o incentivo a bolsas de estudo, emprego, materiais escolares, intercâmbios escolares e desportivos, bem como, o sistema de apadrinhamento(indivíduos que se identificam com a causa e se comprometem a ajudar) são contributos que poderiam fazer uma grande diferença na vida das pessoas como ela, permitindo que contribuam para o desenvolvimento do país. 

Para finalizar, ela deixa uma mensagem:

"Entendam que não é a nossa vontade estar nessas condições, somos todos iguais, pois todos estamos sujeitos que nos aconteça algo do género, portanto, temos que encarar a realidade assim como ela é, e para aqueles que estão desanimados quero dizer a eles que não percam à vontade de viver".

Camnalai aproveita esta oportunidade para agradecer a Agrice que acompanhou todo o seu percurso escolar permitindo chegar a universidade.  

 

Abdulai Seidi Deficiente Visual

Abdulai Seidi é um jovem guineense de 28 anos, deficiente visual que está a terminar o segundo ano de universidade do curso de sociologia de investigação.

Ao nascer o acolhimento no seio familiar não foi muito fácil, pois descobriram aos três meses, que ele tinha dificuldades e não conseguia identificar alguns brinquedos que atiravam para o chão. Alguns movimentos físicos que ele fazia ao tentar gatinhar, fizeram com que a família disse-se que ele era um serpente (símbolo da maldição)e que era necessário fazer uma "cerimónia" (nome designado culturalmente à alguns cultos locais) para constatar se de facto ele era um "ser humano" ou um ser "sobrenatural". Para tal, foi realizada uma cerimónia (nome designado culturalmente à alguns cultos locais) e ele foi colocado em baixo da cama, onde passou toda a noite. Perto dele, colocaram de um lado ovos e do outro a farinha. O passo seguinte era esperar e observar, para que lado ele iria gatinhar, pois a direção escolhida por acaso, determinaria se ele era um ser humano ou sobrenatural.  Se ele gatinhasse em direção à farinha significava que era um ser humano e no caso contrário (na direção dos ovos), era um serpente, o que automaticamente significaria uma rejeição familiar e social. Segundo Abdulai, ele acabou por gatinhar na direção da farinha, mas mesmo assim, os avós maternos e os restantes membros da família impediram-no de ficar em casa e conviver com eles. Pediram a mãe que se deslocasse  com o filho para o interior da Guiné, afim de fazer mais uma "cerimónia", desta vez ao pé de um rio. Assim, foi colocado ao pé do rio no meio entre duas pedras, esperando que a água fizesse a sua parte, ou seja, se por acaso fosse levado pela corrente, significaria que de facto era um ser sobrenatural, caso contrário, era um ser humano e poderia voltar a conviver no seio familiar, e com a comunidade local. Depois de ter ficado algum tempo perto da água, a mãe voltou e o resgatou. A comunidade insatisfeita, pediu a mãe que o entregasse a um senhor que tinha o Dom para detectar as crianças anormais, e foi desta forma que ele foi entregue a este senhor que já tinha na sua posse outras quatro crianças. Após ter entregue o filho nas mãos praticamente de um desconhecido, ela não ficou convencida da sua ação e resolveu seguir o senhor e pedir que devolvesse novamente o filho. Ao ter o filho nos braços  decidiu não regressar ao seu lar e seguiu para a casa do irmão (o tio da criança), onde ficou algum tempo, mas este, depois pediu que ela fosse embora pois ele tinha medo que Abdulai pudesse fazer alguma coisa de mal à prima.

E foi assim caminhando de casa em casa, que com o passar do tempo os avós maternos decidiram aceitar a mãe de volta, pois entenderam que o destino assim quis...

Uma vez no seio familiar, uma parte da família achou que a melhor solução para o futuro dele era envia-lo para estudar alcorão no Senegal e assim transforma-lo numa criança Talibé (crianças enviadas para aprender o Corão, mas que são obrigadas a mendigar para poderem sobreviver).  

Entretanto, nem todos os membros da família concordaram com esta decisão, e ao mesmo tempo a família começou a receber ajuda alimentar (género alimentício) por parte de uma ONG internacional. Esta ajuda foi fundamental para que ele pudesse ficar com a família e estudar, pois era considerado uma mais valia em termos económicos. Apesar de ter "obtido" a possibilidade de estudar, Abdulai frisa que não houve grandes investimentos a nível de materiais escolares que ele precisava para frequentar a escola. Por exemplo, ao invés de ter uma mochila como outras crianças da casa que frequentavam a escola, ele tinha uma bolsa de plástico que utilizava para colocar os materiais escolares. Segundo ele, para a família não valia a pena estar a investir muito, pois ele não iria conseguir obter nada com a escola, porque na cabeça dos familiares, pessoas sem deficiência lutam muito para conseguir um emprego, e nem sempre conseguem, então imagine com deficiência...

Ignorando tudo isso, ele continuou o sua trajetória, ajudado pelo falecido irmão, pessoa que foi fundamental no seu percurso escolar, pois acreditava nas suas capacidades e o acompanhava diariamente à escola. Infelizmente, com o desaparecimento físico dele, Abdulai ficou dois anos sem frequentar a escola, o que lhe deixou muito triste...

Com o passar do tempo retomou as aulas com algumas dificuldades. Segundo ele, às vezes pedia ajuda as pessoas na rua para ajuda-lo  a atravessar a estrada e as pessoas ficavam com medo, pois  para muitos o facto de tocar nele poderia trazer má sorte.

Entretanto, apesar de todas estas "entraves", ele conseguiu dar continuidade aos estudos. Um dos momentos que ele considera marcante foi quando terminou o décimo segundo ano, e o professor de economia chamou a sua família e fez muitos elogios. O professor contou que ele já teve muitos alunos, mas que nunca tinha ficado tão satisfeito em corrigir uma prova como a do Adulai, e que ele tinha decidido guardar aquela prova como recordação. A família sentiu um enorme orgulho em ouvir as palavras deste professor. Adulai afirma que obter o diploma de décimo segundo ano, foi um dos momentos de maior orgulho para ele. A batalha dele contribuiu muito para reduzir o estigma e a discriminação dentro da própria família.

Por ter uma excelente voz chegou a trabalhar numa das rádios do país, imitando relatos de jogos.

Ao escolher o curso de sociologia de investigação não teve dúvidas que queria um curso que de certa forma permitia estudar a estrutura, a cultura e as dinâmicas sociais, ou temas que de certa forma identificam-se com a sua história de vida, por acreditar que seria uma contribuir para mudar a realidade de muitas pessoas. Agora o objectivo principal do seu estudo é fazer pesquisa detalhada sobre o infanticídio na Guiné-Bissau, e servir como porta voz desta causa,  mostrando que é possível mudar esta realidade.

Perante a sua história, Abdulai considera-se um sobrevivente e privilegiado de um sistema de infanticídio no país,  e considera que o número de casos de infanticídio tem vindo a reduzir a medida que aumenta a informação e a sensibilização de pessoas sobre este assunto. Ele acha que é muito importante incentivar políticas inclusivas, de modo tal a não transformar as pessoas que se encontram nestas condições em "pedintes", e sublinha "não queremos pedir esmolas, queremos estudar e trabalhar". A autonomia financeira é um dos factores essenciais para melhorar a inclusão.

Abdulai faz um apelo aos pais e encarregados de educação: Que não se sintam desanimados quando as crianças têm algum tipo de deficiência. Que não escondam as crianças em casa, porque assim irão contribuir para piorar a sua realidade, realçando que vergonha por causa das dificuldades não leva a lado nenhum. Têm que trabalhar e acreditar que dias melhores virão. Portanto é necessário investir na edução.

E concluí dizendo que "um homem que anda com coragem, anda motivado, mesmo sendo excluído!

Adulai Seidi

Não existe dúvidas de que estamos perante jovens guerreiros que vêm aproveitando as poucas oportunidades que a vida tem-lhe oferecido para triunfar. Que a história de Camnalai e Abdulai sirva de exemplo e inspiração para muitos jovens.

O PNUD tem trabalhado através de vários projetos e programas para garantir a inclusão de pessoas com deficiência. A inclusão das pessoas com deficiência é fundamental para a implementação da agenda 2030.

As Nações Unidas celebraram no Dia 3 de Dezembro, Dia Internacional das Pessoas com Deficiência.

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